Época de silêncio: a mulher na literatura do século XIX.

 Poliana Brito Sena[1]

Agora... As mulheres começam a explorar o mundo das mulheres,
a escrever sobre as mulheres, como nunca se escreveu antes,
pois, até época bem recente, as mulheres na literatura eram
certamente uma criação dos homens.
Virginia Woolf

RESUMO: O presente trabalho pretende oferecer uma breve explanação a um dos pontos fulcrais da literatura do século XIX, a redução da mulher ao status de objeto de inspiração literária, bem como, apresentar o abismo entre a realidade da época e a idealização da mulher, no romance Diva, de José de Alencar.

Palavras-chave: Literatura, Romantismo, representação feminina, idealização.

1- introdução

Na cultura tradicional do Ocidente, os diferentes discursos do poder, tais como o científico, filosófico, educacional, religioso, e mesmo o literário seguem normas discriminatórias em relação ao sexo feminino. Nesse sentido, o Romantismo, movimento artístico e revolucionário surgido nas últimas décadas do século XVIII na Europa que perdurou por grande parte do século XIX fazia uso deste discurso marcado por exprimir a singularidade da mulher enquanto objeto submisso, destinado à procriação e aos afazeres domésticos.
Os autores, através da ascensão da burguesia e do seu espírito romântico retratam nos romances os amores trágicos, utópicos, emocionais, culturalmente submetidos ao poder de uma sociedade patriarcal com imensas implicações ideológicas como é vista na obra Diva de José de Alencar.

Nos romances urbanos alencarianos, os temas desenvolvidos tratam da vida na capital e relata as particularidades da vida cotidiana da burguesia. Em muito deles, os mais polêmicos da vasta obra do escritor, traz à tona temas realistas sob moldes românticos que tanto a sociedade quanto a crítica brasileira preferiam ignorar.

A força ideológica dominante e arraigada no imaginário do homem Alencar é marcada por um estilo moral e decoroso principalmente nas relações de poder que envolve o feminino e o masculino na literatura, enfatizando dessa forma o caráter do gênero para definir seus limites.

Várias histórias de mulheres nomearam seus livros procurando retratar o papel da mulher sobre diferentes matizes no tecido social sendo elas: A Viuvinha (1857), Lucíola (1862), Iracema (1865), Senhora (1874) e o romance Diva (1864) que será objeto de análise deste presente artigo.

2-Objeto mulher, uma visão reducionista.

Analisando estudos da produção literária do século XIX, pudemos constatar grande influência do Romantismo, movimento revolucionário da história da literatura, pois apresentou um rompimento brusco no uso dos aspectos formais e estruturais do fazer literário, sobre o comportamento feminino, impondo critérios entre bem e mal, certo e errado.

Durante séculos e séculos, a voz feminina em relação à produção e publicação de livros, a manifestação política e a sua própria sexualidade foram silenciadas pelo discurso da defesa da moral e dos bons costumes instaurados pela ordem patriarcal, e se caso essa voz chegasse aos meios de comunicação de massa, era sob a ótica masculina. Nesse sentido, muitos confundiam a liberdade de expressão da mulher com igualdade ao homem:

Repressão sexual consiste num sistema de normas,
leis e valores que são definidos explicitamente pela religião,
pela moral e, na nossa sociedade, pela ciência também. [2]

Valem lembrar que na Idade Média e mesmo na Antiguidade, as mulheres eram vistas como anjo maligno, em contrapartida, os homens eram tidos como anjos bons tentados pela maldade feminina. Já no Romantismo, essa imagem começa a traçar outras faces, embora, com raízes profundas de subordinação e submissão ao discurso masculino.

A conduta destinada à sexualidade feminina precisava ser organizada por leis e normas, sob um regime de extremo controle, ao passo que a dos homens, baseado numa superioridade milenar eram livres para ser, pensar e expressar como o único possível a transgredir. Isto acabou por apresentar duas características às mulheres: de um lado, a esposa exemplar, casta, obediente, a figura materna representando o abrigo para o sofrimento, e do outro, a meretriz desrespeitada, vulgarizada, mas, sempre pronta a atender com habilidade os prazeres carnais.

Nesse discurso, é possível observar uma grande característica do Romantismo, o individualismo, tanto na conduta das mulheres quanto no machismo dos homens, pois eles preferiam se sujeitar a morte, a ter que se submeter à realização de tarefas que eram destinadas e impostas as mulheres, pois cabia a elas zelar pelo bem-estar da família. Assim edificou o modelo da mulher brasileira, mais mãe que amante mais submissa que independente, mais violentada que respeitada, ainda que na literatura fosse vista como um objeto artístico, uma obra da natureza da mais bela feição, como idealiza José de Alencar em muitos de seus romances.

Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor
da gardênia dos nossos campos,
orvalhada pelo sereno da noite:
o hálito doce e ligeiro exalava-se formando um sorriso. [3]

3-Diva: valorização ou idealização?

Diva é o segundo romance da trilogia de José de Alencar que foi designada ao “perfil” das mulheres e o quinto de sua obra geral. Foi introduzido na sociedade em 1864, época marcante da vida burguesa carioca, que também faz questão de mencionar em sua obra.

Por se tratar de um romance urbano, este se passa na cidade do Rio de Janeiro onde os protagonistas Augusto e Emília se conhece. Depois de salvar a vida de Emília, Augusto se submete aos seus caprichos e começa a sofrer constantemente sem entender tanto desprezo e humilhação, e a partir daí os dois passam a viver um jogo de ódio e amor.

Emilia não tinha rivais, me disputava a ninguém;
dominava-me na soberania
de sua beleza, e atraia-me
ou arredava-me a seu bel-prazer. [4]

Depois... Quem sabe? ...
Talvez me resolva dançar.
Se me pedirem muito! ...
Emília sorria dizendo estas palavras. [5]

Em Diva, José de Alencar desenha a beleza, os conflitos psicológicos e as contradições de Emília, a qual é retratada com um perfil feminino que possui uma posição de superioridade em relação aos demais mortais, dona de uma beleza sobrenatural e de extrema sedução, e mesmo com sua pureza era capaz de conquistar um homem e fazê-lo cativo.

Encantado com a imagem dessa personagem da vida real, José de Alencar dá origem ao seu discurso com um ar valorativo, ou seria apenas um fruto idealizado de sua imaginação? A figura de Emília que é marco central da obra exibe os contornos graciosos de sua beleza e a altivez de rainha que só existia na ficção de Alencar, visto que, a realidade de uma mulher presente na sociedade daquela época era incomparavelmente impossível. Sua função passava bem distantes do poder, da participação política, da voz que pudesse ser dita e ouvida.

O romance é ambientado na pobre decoração do antigo cassino de constante boemia, no luxo que desde muito tempo batia a porta da habitação do comerciante Sr. Duarte e numa sociedade com características ambíguas, ora moderna, ora conservadora. Assim como, a atitude de Emília, às vezes serena, amorosa, outras vezes, mesquinha, egoísta e severa.

No começo, Augusto a tem como uma deusa, virgem de amor, imaculada que merece sua adoração, mas com o decorrer da trama, após sofrer humilhações constantes, o amor começa a transformar-se em sentimentos de rejeição, raiva e vingança. Contudo, ele volta a admitir o seu amor por esta mulher, porém de forma dessemelhante, demonstrando seus desejos carnais e evidenciando que toda aquela superioridade que Emília apresentava não passava de um mero discurso dominante que ditam regras para o que é ser feminino.

Pois bem! A senhora quer! É verdade! Eu a amo!
Mas aquela adoração, aquele culto sagrado cheio de respeito e admiração...
Tudo isso morreu! O que resta agora neste coração que a senhora esmagou
por um bárbaro divertimento, o que resta, é o amor brutal, faminto, repassado de um ódio...
é o desespero de ser escarnecido, e a raiva de querê-la e obrigá-la a pertencer-me
para sempre e contra sua própria vontade!...[6]

Depois de todo desprezo de Emília para com Augusto, depois de tanta maturidade e indepêndencia demonstrada por Emília através da fala, dos gestos e atitudes , seu reino cai por terra reforçando assim as marcas do romantismo, onde a mulher não poderia transceder as tarefas de simples dona do lar, voltada para atender as vontades dos seus maridos.

Emilia arrastou-se de joelhos pelo chão.
Apertou-me convulsa as mãos, erguendo para mim
seu divino semblante que o pranto orvalhava.
__ perdão!...Soluçou a voz maviosa. __ perdão, Augusto! Eu te amo!... [7]

A personagem se rende à supremacia masculina onde é vista sob o prisma de um ser inferior com necessidade de ser educada rigidamente dentro dos padrões impostos pela sociedade aprendendo a ser tímida ou mostrar-se tímida diante dos estranhos e ser dotada de habilidade doméstica para garantir um bom casamento.

Sua imaginação fora a tempo educada:
ela desenhava bem, sabia música e a executava com mestria;
excedia-se em todos os mimosos lavores de agulha,
que são prendas da mulher.[8]

4- considerações finais
Com base no estudo realizado sobre o Romantismo que surgiu no final do século XVIII e perdurou pela primeira metade do século XIX, a representação feminina nesse período era extremamente discriminada e vista sob o prisma de um ser inferior que devesse ficar isolada do convívio social.

Com o passar do tempo, a mulher foi ocupando seu espaço e conseguindo muitos feitos, como o direito do voto, a publicação e autoria de livros a luz de muitas personagens como Emília que se apagou na sombra da opressão moral, espacial e sexual.

Diante de toda essa evolução que ocorreu em relação à violência, ao preconceito, aos abusos infligidos ao sexo feminino é podemos, hoje, desconsiderar a afirmação de Fénelon,[9] em Educação das meninas (1687) que as mulheres têm o espírito mais fraco e curioso que os homens, e por isso não devem nunca governar o estado, nem fazer guerra ou entrar para o ministério das coisas sagradas.

[1] Alunas do terceiro semestre do curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.
[2] CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual. 12. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 80.
[3] ALENCAR, José de. O guarani. São Paulo: escala 1998, p. 38.
[4] ALENCAR, José de. Diva. São Paulo. Escala, 1998. P.50.
[5] ALENCAR, José de. Diva. São Paulo. Escala, 1998. p.28
[6] ALENCAR, José de. Diva. São Paulo. Escala. 1998. P. 83
[7] ALENCAR, José de. Diva. São Paulo. Escala. 1998. P. 84
[8] ALENCAR, José de. Diva. São Paulo. Escala. 1998. P. 20
[9] REIS, Lívia de Freitas; VIANNA, Lúcia Helena; PORTO, Maria Bernadette. (org.) Mulher e Literatura: 2 ed. Niterói, RJ: Eduff ,1999. P. 441

4 comentários:

  1. Excelente artigo. Fala muito bem sobre a representação feminina na literatura. Parabéns!!!

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  2. AMEI O ARTIGO, VAI ME AJUDAR BASTANTE NO MEU TCC QUE É SOBRE ISSO

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  3. Muito bom o artigo, gostei! Parabéns!

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  4. Ótimo trabalho,me ajudou muito no meu TCC.Obrigado

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