Für Elise X A Hora da Estrela: um dueto marcado pelo questionamento social dos movimentos migratórios.

Poliana Brito Sena.[1]

Sou jovem. Sou migrante. Não que eu queira, me obrigaram.
Na minha terra Natal fui estrangeiro, me pediram passaporte,
e me disseram estar clandestino, de lá me expulsaram...
Deixei minha terra natal. Migrei na busca do melhor.
Quando cheguei por estas bandas, percebi o que é pior.
Aqui estou perdendo a cultura. Me sinto outra criatura.
Em nível bem menor.[2]

Resumo: o presente artigo pretende apresentar uma considerável exploração de alguns aspectos relevantes do conto Für Elise de Hélio Pólvora. Por meio da literatura o autor transcreve suas impressões sobre a condição migratória de interioranos que partem para a capital fugindo ...
das mazelas do meio rural em busca de dias melhores. Nesse sentido, analisaremos o processo de mudança, permanência e retorno desses migrantes no Brasil.

Palavras-chave: Literatura Baiana, Hélio pólvora, migração, zona rural e urbana.

1- Introdução

A partir dos anos de 1950, coincidindo com o processo de industrialização do país e com o segundo governo do então presidente Getúlio Vargas[3], a saída de trabalhadores da região nordestina em busca de melhores condições de sobrevivência é um processo marcante. O sudeste, principalmente, São Paulo e Rio de Janeiro foi durante muito tempo, o local para onde se dirigiam milhões de pessoas oriundas em sua maior parte da zona rural. Esse fluxo migratório se intensificou durante toda a década de sessenta e teve seu apogeu até a metade dos anos setenta, quando exauriu o período de crescimento econômico do nosso país.
Nessa perspectiva procuraremos apresentar as minúcias que coloca Hélio Pólvora no conto Für Elise[4], ao discutir dentre outras, a condição migratória de um casal que sai do interior em busca de melhores dias no Rio de Janeiro, as mazelas vividas pelo casal em um quarto de pensão nesta mesma cidade, assim como relacionar alguns aspectos do movimento migratório discutidos em Für Elise e A Hora da Estrela de Clarice Lispector.

Hélio Pólvora nasceu em outubro de 1928 no município de Itabuna onde residiu até 1942 quando foi estudar o curso secundário em Salvador. Em 1953 segue para o Rio de Janeiro iniciando oficialmente sua carreira de crítico literário, jornalista militante, ficcionista e tradutor. Atualmente reside em Salvador, escreve crônica para o jornal A Tarde, é presidente da Fundação Cultural de Ilhéus e pertence à Academia de Letras da Bahia.

Pólvora escreveu vários livros, dentre eles: Os Galos da Aurora (1958), Estranhos e assustados (1966), Noites Vivas (1971), O Grito da Perdiz (1973), Massacre no km 13 (1978), Mar de Azov (1986), Xerazade (1990), O rei dos Surubins e outros contos (2000), a maioria, de contos. Em 1982 obteve o primeiro lugar na categoria Conto, I Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, com O Grito da Perdiz e em 1986 na III Bienal Nestlé, com o Mar de Azov. [5]

Em sua obra, Pólvora conjuga literatura com significado, afirmando que tudo é possível no terreno da invenção, escreve com intensidade, uma sutil ironia, e um manejo depurado da linguagem. A realidade se constitui figurativa ao expor que os valores, as angústias, as feridas, as referências culturais às terras baianas estão presente na sua produção literária.

Für Elise (para Elisa) é uma melodia para piano, talvez a mais conhecida mundialmente de Ludwig Beethoven que, segundo a história, teria sido composta, pelos anos de 1808 ou 1810, em honra de uma moça a quem propôs casamento e por acreditar que Beethoven não seria um marido adequado, mais tarde casou-se com outro. Für Elise é uma peça musical composta em lá menor, cuja estrutura revela um tom melancólico, sofrido e triste, como acontece com todas as tonalidades com o modo musical menor (dó menor, mi menor, etc.).

Mediante as ênfases apresentadas por Hélio Pólvora na construção de seu conto, partiremos para a discussão mais detalhada das temáticas abordadas pelo autor ao delinear seus personagens, seu compromisso com o ficcionismo sem se desvincular das sutilezas e encantos propiciados pela melodia que envolve a prosa moderna, e sem distanciar da terra, ou melhor, do interior baiano.

2- As mazelas decorrentes do processo migratório no Brasil e o retorno à terra natal.

O contexto histórico que se restringe ao aspecto migratório da população brasileira está intimamente relacionado aos fenômenos sociais e políticos. A migração interna do Brasil não é um fato decorrente de guerras, a sua maioria se processou através de fatores relacionados à situação econômica, a necessidade de melhores salários, de uma melhor condição de vida.

... Pode-se afirmar que os deslocamentos em
nosso país estão claramente relacionados,
entre outros fatores, com o processo de desenvolvimento
 das relações capitalistas, com a questão fundiária,
o crescimento econômico, a urbanização
e as desigualdades regionais. [6]

No meio rural a pobreza e miséria eram predominante, por isso acentuou-se o processo do êxodo rural e a demanda de mão - de -obra na capital. O local de origem dos migrantes sustentava algumas características que teve grande influência para culminância desse processo: economia estagnada, agricultura atrasada e pouco diversificada, grandes proprietários de terras, concentração de renda, indústria com baixa produtividade, além de sofrerem com as secas periódicas. Este cenário de grandes desigualdades e concomitantemente, castigada pela estiagem acentuada propiciou a migração de muitos nordestinos para os centros urbanos desenvolvidos, especialmente a capital. O economista Paul Singer diz o seguinte em relação ao fenômeno migratório no Brasil:

A criação das desigualdades regionais
pode ser encarada como motor principal
das migrações internas que acompanha
a industrialização em moldes capitalista. [7]


Alguns migrantes, na sua maioria jovem,
 nutriam muita esperança pelo seu novo local de destino.
Acreditavam que teriam acesso a conquistas que jamais
seria possível no lugar de origem. Outros geralmente
“oriundos da zona rural, já não tinham tanta esperança,
 vinham em busca de trabalho, qualquer tipo de atividade,
como a construção civil, o emprego nas madeireiras, motoristas,” etc. [8]

De modo geral, pessoas entre 18 a 26 anos estariam sujeitos a migrar mais do que qualquer outro grupo etário. Essa elevada concentração de jovens entre os migrantes seria explicada pela maior sensibilidade dos mesmos as ofertas de trabalhos e de melhores empregos, maior facilidade de adaptação em outros lugares, maior desprendimento em deixar seu lugar de origem, necessidade de acompanhar o cônjuge em casais recém-formados, assim como a busca pela formação educacional e profissional em centros regionais maiores.

Em Für Elise de Hélio Pólvora é possível perceber a migração como um dos aspectos mais fortes de sua construção. Leda e André, personagens centrais dessa trama saíram do interior com destino ao Rio de Janeiro na tentativa de conseguir um futuro melhor para sua família. Leda deixa seus dois filhos para trás aos cuidados da mãe e refere-se a eles com muita saudade, mas demonstra acreditar em dias melhores, dias em que André começará a ganhar mais dinheiro e assim reunir novamente a família.

Vieram do interior dois meses atrás...
 Leda se enternece ao pensar nelas...
Daqui a pouco André começa a ganhar mais,
a gente manda buscar vocês. [9]

Um aspecto comum entre as migrações rurais é a partida em grupos como uma forma de organização, um modo de se sentirem mais seguros. Essa é a primeira grande dificuldade das pessoas que se deslocam de seu lugar de origem para a zona urbana, muitos não conseguem chegar ao seu destino devido às mazelas da pobreza e da fome, pois a viagem é dura e cansativa.

De modo que a sua maioria recorria aos mais variados meios de transporte para se locomoverem: andavam a pé, a cavalo, de carroça, nos vapores, de trem, de caminhão, enfim, o que fosse necessário para chegar a capital. [10]
É importante ressaltar que o lugar de origem e o que se pretendia estabelecer guardava muitas diferenças que “provocava de imediato alterações no cotidiano”[11]. Essas Mudanças podem está relacionado a vários fatores: no tocante ao tipo de trabalho, à vizinhança, ao poder público, às formas de moradia, ao convívio com pessoas de culturas diferente, ao lazer, a educação. Essa experiência constitui-se um momento de grande ruptura em suas vidas, pois hábitos e costumes são deixados para trás, restando-lhe apenas lembranças e saudades. Nesse sentido, Francisco santos ressalta:

É comum nos migrantes nordestinos essa espécie de “banzo”,
de saudade, de retornar para rever o lugar em que nasceram.
 Mesmo entre os filhos desses migrantes, os que já nasceram
em outros Estados, também é percebido esse desejo de
conhecer as terras dos pais, do conhecer as origens. [12]

E importante frisar que muitos recém-chegados encontraram pessoas boas que viviam ali há mais tempo e ajudavam no que fosse preciso, indicavam os possíveis lugares de trabalho, arrumavam as moradias, ajudavam na retirada de documentos que a sua maioria não possuía, levavam-os as casas de parentes e amigos, enfim, orientavam sobre a vida no novo espaço. Mesmo diante disso, grande parte desses migrantes sentia uma espécie de abismo entre o mundo que deixaram e o mundo que agora lhe cabia conhecer e dominar. Tudo era estranho a eles, tudo causava insegurança, assombro, medo e muitas vezes, desejo de retornar a sua terra natal.

Contudo, as transformações na estrutura produtiva brasileira com novas configurações do desenvolvimento regional que se delinearam a partir da década de 70 ambientaram importantes manifestações na dinâmica migratória nordestina. O processo de desconcentração de migrantes nas capitais foi constituído pela política de incentivo ao investimento industrial no Nordeste. Isso fez com que a migração rural diminuísse e o número de pessoas retornando para as terras nordestinas aumentasse, principalmente , “na década de 80 que se destacou pelo inicio desse fluxo de retorno”, segundo Cunha[13].

A migração de retorno tem surgido como uma nova configuração do quadro da migração. Desde a década de 80, vem se observando o crescimento deste tipo de migração e a partir da década de 90 ela tem tornado-se um fenômeno realmente expressivo. O censo de 2000 revela que cerca de 5,259 mil indivíduos declararam ter morado em alguma outra unidade da federação no ano de 1995, sendo que dentro deste fluxo de migração, aproximadamente, 1,135 mil são pessoas que estão regressando para sua terra natal. Assim, os indivíduos retornados representam 21,60% da migração realizada no período de 1995-2000.

Para os estado do Nordeste, o número de retornados é bastante expressivo, boa parte da migração para esta região, deve-se às pessoas que estão retornando as suas origens. O número de pessoas que entraram na região Nordeste entre 1995-2000 foi 1053 mil pessoas, sendo que 58 mil delas se dirigiam para o lugar de nascimento, correspondendo, portanto, 43,5% deste fluxo.

Diante desses fatos é possível constatar que desde o início do século XX até os dias atuais muito se modificou em relação à estrutura migratória do país. Na primeira metade desse século, a intensa migração para a zona urbana por motivos já destacados é consideravelmente uma condição para um futuro melhor. No entanto, nas últimas décadas 80 e 90 esse cenário começou a se transformar devido às dificuldades encontradas em se obter emprego, na precariedade das moradias, e também pelas novas características de desenvolvimento das regiões nordestinas.

2- O cotidiano dos migrantes na metrópole.

A narrativa brasileira contemporânea, como é o caso de Helio Pólvora busca entre outras vertentes apropriar-se das reais condições dos aspectos sociais, econômicos, políticos, enfim, da realidade para transformá-la em cenário de seus enredos. No caso do conto Für Elise a cidade e o processo migratório aparecem não somente como espaço geográfico, mas enquanto agente significante da narrativa como um todo.

Assim como Leda, Dr. Max, André e Isaura são personagens que constrói e dão forma ao conto, assim é a cidade, a pensão e tudo que está no plano do espaço físico, pois, esta segunda imagem, a de confusão, desarrmonia e individualismo decorrente da vida na metrópole consiste em inúmeras possibilidades de criação.

A cidade, como destaca Regina Dalcastagnè é um símbolo de sociabilidade e ao mesmo tempo, de diversidade humana, em que convivem massas de pessoas que não se conhecem, não se reconhecem e mal se cumprimentam. Essa postura pode analisada sob uma possível transformação de identidade do migrante, das diferentes personalidades e do estranhamento àquela gente, aquele lugar bem distante da realidade da qual era exposto na sua terra de origem.

A pensão na praia de botafogo está calma,
os hospedes ainda não voltaram da rua.
O que fazem, como ganham a vida?
 Leda gostaria de saber. As pessoas são
misteriosas, escondem o jogo.
Por trás da fachada da fisionomia
e das frases formais, muitas interrogações.
Em geral, caladas, discretas, às vezes abatidas e distantes[14].

Os locais de hospedagem durante a intensa onda migratória para São Paulo e Rio de Janeiro durante o século XX andavam sempre lotados com pessoas de várias partes do Brasil. Homens e mulheres eram “fantoches” nas garras sociedade vigente, muitos por não conhecer as artimanhas e golpes das pessoas da capital, que por sinal faziam tudo para ganhar um dinheirinho extra, enganavam, iludiam e roubavam os recém-chegados. Estrela reforça esse aspecto dizendo que “a desorientação dos recém-chegados aos grandes centros é notória. Estes eram as vítimas preferenciais de espertos e gatunos que se postavam nas estações de embarque para roubar-lhes os pertences”. [15]

Esta colocação de Estrela, também pode ser encontrada no livro A Hora da Estrela de Clarice Lispector, que estabelece um forte diálogo em relação aos aspectos migratórios revelados no conto Für Elise, objeto de estudo deste artigo. Na obra de Lispector, é apresentada a história de Macabéa, personagem protagonista, vinda de Alagoas para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Após chegar a capital, Macabéia passa a morar com mais quatro colegas de quarto e inicia seu trabalho como datilógrafa. Uma mulher sem identidade, que sonha ser igual à Marilyn Monroe (famosa atriz de cinema), sem saber quem é, a torna incapaz de impor-se a frente de qualquer um. Começa a namorar Olímpico, um nordestino ambicioso que não ver nela qualquer tipo de ascensão social. Assim sendo, ele a abandona e começa a namorar Glória que é colega de trabalho de Macabéa, afinal, o pai dela era açougueiro, o que lhe sugeria uma melhora na vida financeira. Movida pela tristeza de ter sido trocada, a personagem incentivada pela própria Glória, vai à procura de uma cartomante, que prevê que ela seria finalmente feliz.

A felicidade viria de fora, do estrangeiro.
A cartomante mostra-lhe a tragédia que é sua vida,
mas, ao mesmo tempo, dá-lhe a esperança de acreditar
 que as coisas poderiam ser diferentes...
a possível felicidade. Quando sai da casa da cartomante,
é atropelada por Hans, que dirigia um automóvel Mercedes-Benz. [16]

No momento do atropelamento de Macabéa nota-se as previsões da cartomante, porém, de forma irônica. É através da sua morte, que Macabéa consegue um destaque em sua vida, com seu corpo desfalecido no meio da rua.

(...)" A morte dela é o momento em que Eros (Amor) se une a Tanatos (Morte), vida e morte, num momento doce, e sensual: "Então - ali deitada - teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte. (...) E havia certa sensualidade no modo como se encolhera. Ou é como a pré-morte se parece com a intensa ânsia sensual? É que o rosto dela lembrava um esgar de desejo. (...) Se iria morrer, na morte. [17]

A hora de sua morte seria a sua “hora da estrela”, momento de libertação para alguém que, afinal, vivia em uma cidade toda feita “contra ela”, onde a tratavam como uma intrusa e invisível aos olhos de todos.

4- considerações finais

A migração dirigida da zona rural para a zona urbana é, sem dúvida, um dos principais fenômenos ocorridos dentro do fluxo de migração brasileiro, nos últimos cem anos. Regiões tradicionalmente, fornecedores de mão-de-obra como o Nordeste apresentaram-se em grande escala esta migração.
A análise destas obras denuncia todo o contexto social brasileiro, e por extensão a injustiça, do mundo. Apresenta a estrutura do ser humano massacrado por esta sociedade capitalista e dominante, mostrando claramente o preconceito contra os ofendidos e humilhados desta mesma sociedade. Através das personagens é demonstrada a pobreza “feia” e ao mesmo tempo a fragilidade de vidas não muito interessantes. Quando a solidão é remetida nas obras, tem a função de dar destaque as desigualdades sociais e ao enigma da vida, nos fazendo refletir aos problemas e indagações que nos cercam.


[1] Acadêmicas do quarto semestre do curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, campus x. [2] Letra de uma música feita por um migrante retirada do livro SANTOS, Daniel Francisco dos. Experiências de Migração de trabalhadores Nordestinos - Rondônia 1970-1995. Salvador: EGBA, 2003. p. 83.
[3] Primeiro governo do Presidente da República Getulio Vargas (1930-1945). O período citado corresponde ao segundo governo (1951-1954)
[4] Retirado do livro: Antologia panorâmica do conto baiano-século xx. Organização e introdução de Gerana Damulakis. Ilhéus: Editus, 2004. p. 180-191.
[5] Biografia disponível em: < http:// www.Jornaldecontos.com >. Acesso em: 25 mai. 2008. (site do autor).
[6] ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas FFLCH/ USP: Fapesp: Educ, 2003. p. 240
[7] ESTRELA, op. Cit. p. 32
[8] SANTOS, op. Cit. P.
[9] DAMULAKIS, op. Cit. p.183.
[10] ESTRELA, op. Cit. p. 32
[11]ESTRELA, op. Cit. P. 28
[12] SANTOS, op. Cit. P. 98.
[13] CUNHA. J.M.; BAENINGER, R. A migração nos estados brasileiros, no período recente: principais tendências e mudança.In: ENCONTRO NACIONAL SOBRE MIGRAÇÃO, 2., Anais...Belo Horizonte: Abep, 2000.
[14]
DAMULAKIS, op. Cit. P. 181
[15] ESTRELA, op. Cit. P. 157

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